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  • Foto do escritorRevista Alagoana

A judicialização da cor




Coluna de Madson Costa em colaboração com Elias Felix Silva da Rocha





A ideia de Direito não deve se limitar apenas a uma noção de “instrumento de controle social”, como muitas pessoas insistem em difundir, é, por outro lado, um instrumento de positivação, que, em outras palavras, quer dizer estabelecer como regra, de costumes, interesses, conflitos e crenças. É dentro desse aspecto que deve se observar a utilidade prática do Direito em uma sociedade marcada profundamente pelo conflito.


Se, de fato, temos uma sociedade pautada pelo conflito de interesses entre grupos sociais, a posse dos mecanismos institucionais de poder apresenta-se como uma importante via de mudança e estabelecimento de interesses. Em tese, em uma democracia tem-se um Estado de classe, e não da classe. Na historiografia brasileira, o Direito é um mecanismo de poder apossado por uma classe especifica há séculos, e todos sabem qual é, a do colonizador e seus descendentes.


A noção brasileira de Direito é alicerçada nas crenças e interesses coloniais. Apesar disso, não me faz sentindo permitir que o Poder Judiciário permaneça nas mãos de “brancos”, que já o tem há séculos. Se realmente queremos mudança, é necessário que a “sub-humanidade”, nós, os marginais, nos apossemos dele.


Há mais de quatro séculos somos julgados pelos olhos do branco, não seria a hora de olhar por outros olhos? Ou, ao menos, de humanizá-los. É nesse contexto que surge a ideia de “judicialização da cor”. A judicialização da cor refere-se a ocupação dos espaços do Poder Judiciário pela negritude e seus interesses, assim como todos os outros cujas raízes não remontam ao colonizador.


O Poder Judiciário detém a função de exercer da Jurisdição do Estado, ou seja, exercer o poder de dirimir (resolver) conflitos entre os indivíduos, de forma “imparcial”, além de aplicar a lei. O fato é que se realmente pensamos em um Brasil de mudanças, isto perpassará pela ocupação dos espaços de poder, algo que é imprescindível, estabelecendo nossos interesses e pautas, garantindo que sejamos ouvidos e, sobretudo, possamos humanizar o julgamento.


Juízes, promotores, desembargadores, entre outros, brancos, com pouca ou nenhuma experiência dentro da realidade brasileira são os responsáveis por aplicar a lei, formando uma casta de intocáveis sem consciência de classe, raça ou sexo, reproduzindo as estruturas do sistema que os alimenta. A verdade é que se nos encontramos em um momento de transformação social, perpassado pelas demandas do movimento negro, dos povos originários e das mulheres, é necessário que haja representantes desses grupos no Judiciário.


Equiparar injuria racial ao racismo não me parece realmente efetivo sem que haja uma substancial mudança no quadro de responsáveis pela aplicação da lei. No fim, trata-se de permite a alteridade em um local de homogeneidade excludente, que afasta realidades diversas.


Quando volto à história da emancipação do povo negro no Brasil, não tenho dúvidas de que o Direito foi um importante dispositivo estratégico que, mesmo não se tratando do "reino da salvação", era uma arma que, na luta pela liberdade, poderia e deveria ser utilizada contra os senhores no momento oportuno. Essa era a cosmovisão compartilhada pelo Dr. Luiz Gama, patrono da abolição no Brasil, onde já no século XIX, nos mostrava a importância da participação racializada no Direito.

Embora criticada nos âmbitos mais radicais da luta antirracista, a importância da participação intelectual dos negros na sociedade é empiricamente comprovada. No século XVIII, com nomes como Esperança Garcia, considerada a primeira mulher advogada do Brasil, no século XIX, com Luiz Gama, advogado abolicionista, no século XX, com Guerreiro Ramos, pai da sociologia brasileira, e Abdias do Nascimento, importante figura que lutou contra o mito da democracia racial, e, no século XXI, com Sílvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos, entre outros.

Ainda se atendo a essa crítica, o historiador Sidney Chalhoub afirma que, para cada Zumbi - abertamente rebelde - com certeza existiu um sem-número de escravizados que, longe de estarem passivos ou conformados com sua situação, procuraram mudar sua condição por meio de estratégias mais ou menos previstas na sociedade em que viviam. Mais do que isso, pressionaram pela mudança em seu benefício de aspectos institucionais daquela sociedade.

Como nos ensina o jurista e filósofo Alysson Leandro Mascaro, o que define o Direito não é sua quantidade, mas sim sua qualidade. Devemos refletir que a representatividade propicia a abertura de espaço político para que as reivindicações das minorias possam ser repercutidas, possibilita o desmantelamento das narrativas discriminatórias que sempre colocam as minorias em posição de subalternidade, fortalece os laços sociais e possibilita a redistribuição econômica.

Entretanto, lutar somente pela representatividade, sem reorganizar as estruturas racistas interpenetradas nas instituições brasileiras, assim como no imaginário social, é um erro. O filósofo Anselm Jappe afirma que lutar somente por representatividade, na melhor das hipóteses, desembocará no direito de todos comerem no McDonald's e votarem nas eleições, ou, senão, no direito de serem torturados por um policial da mesma cor de pele, mesmo sexo e falante da mesma língua que sua vítima.

A obra "Black Power: Politics of Liberation in America", de Charles V. Hamilton e Kwame Ture, de 1967, foi uma das primeiras obras antirracistas a analisar a noção de racismo para além do seu comportamento individual, analisando também suas estruturas institucionais. No livro o racismo é definido como: “Aplicação de decisões e políticas que consideram a raça com o propósito de subordinar um grupo racial e manter o controle sobre esse grupo. ”.

Em resumo, a participação da comunidade negra, assim como sua representatividade é de suma importância no âmbito jurídico. Todavia, devemos sempre relembrar as palavras de Charles V. Hamilton e Kwame Ture: “visibilidade negra não é poder negro. ”.


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