Revista Alagoana
A memória do que se (r) via
Colaboração textual de Toni Edson e ensaio fotográfico de Tony Admond
A memória resiste. A memória persiste. A memória registra. E cada registro guardado nos cofres retina, aguçados no tempo dos tímpanos, orquestrado e “olfatado” por narinas inconstantes e revisitado ao gosto consistente-pueril das papilas , precisa de tato. E o ensaio de Tony Admond é de uma delicadeza e de uma poesia que revelam o cuidado e o tato com que foi construída a personagem e o espetáculo A Velha, de Ivana Iza. Uma sutileza potente, praticamente um flerte entre borboletas, de fogo.
Ensaio de Tony Admond
A composição entre a paisagem ribeirinha com seus galhos retorcidos e aspectos de manguezal lembram uma outra velha, bem conhecida nas religiões de matriz africanas, e aqui falo de Nãnan Buruku, a paisagem é contrastada pelo branco dos cabelos, da memória e do figurino da personagem de Ivana Iza. Esse branco, não posso deixar de lembrar, está também nas vestes e na atemporalidade de Oxalá, parceiro eterno de Nanã. Esse ensaio, dessa maneira, pode ser encarado como um casamento, atemporal e memorável. Uma ferramenta documental de suma importância dentro do campo da representação.
O teatro é um registro. Uma fatia de vida, é recortada e dilatada para se construir uma personagem. O teatro , a personagem, se bem construídos, expandem nossa capacidade de reflexão sobre questões humanas muito contundentes e sob um uma lente tal qual lupa que põe o dedo em feridas e tabus que nos colocam em desconforto e confronto. E para colocar o dedo na ferida é preciso muito tato. A atriz Ivana Iza, premiada nacionalmente, é uma das alagoanas com trajetória e carreira consolidada e em plena ascensão, que retrata com responsabilidade algumas agruras e flores da idade avançada.
Se juntam ao time o professor, poeta e dramaturgo Tainan Canário, o diretor aclamado e de currículo vasto Flávio Rabelo e como consultor, o mago, internacionalmente reverenciado pela força do seu discurso, pela sua coragem e pelas atitudes tanto inconstantes quanto conscientes e positivamente radicais, Amir Haddad. Só para citar alguns, a equipe é maior. E essas pessoas aqui citadas são pessoas que apadrinham esse casório.
Do outro lado temos a lente astuta de Tony Admond para ornamentar o que a natureza nos oferece e o que é natural à humanidade. Ancestralidade e velhice, aguas e olhos grisalhos, plantas e rosto retorcidos, marcas indeléveis as quais se deve respeito. Tony, fotógrafo premiado que conduz seu olhar para questões espirituais, sociais e contemporâneas, nos põe em contemplação de um encontro de naturezas, de experiências, de correntezas que ensinam apenas por serem vistas. E revisitadas. Mas Admond, nessa conjuntura, também apadrinha.
Mas afinal quem casa? A imagem do casamento é apenas uma leitura possível dentre as varias as quais o ensaio pode ser apreciado. Esse rico encontro pode ser lido de várias maneiras e sua beleza e poder não se perdem. São fotos singelas, mas de tirar o fôlego. E se aceitamos essa ideia de que ali há um casamento, acredito que o teatro e a fotografia essas artes irmanadas que transcendem conjunturas de gênero, contraem matrimônio, de maneira voraz. Atenção, peço, aos que tiveram paciência de me ler até aqui, sobre detalhes que dão ainda mais fôlego a esse ensaio. Há uma cadeira submersa, a madeira transformada e elaborada, como fazemos no teatro, mergulhada num manancial líquido que certamente encontra outras raizes. Só um detalhe. E há balões, simples balões. Leves, como o ensaio; próximo/distantes, como fotografia e teatro; descoloridos, como a idade tende a nos tornar. Mas as vezes remontando a uma cor que alimenta paixões e circula em nossas veias, vias e “véias”. Laroyê Exu!
*Natural de Aracaju, Toni Edson é ator fundador do Grupo Iwá, dramaturgo, diretor, compositor, contador de histórias, licenciado em artes cênicas (UDESC), Mestre em Literatura Brasileira (UFSC) e Doutor em Artes Cênicas (UFBA), tendo pesquisado procedimentos e tradição oral de contadores de história africanos como inspiração para rodas de história como arte pública com contos brasileiros. Em sua trajetória de 19 anos na área, já atuou em 6 espetáculos de contação de histórias e dirigiu 18. Realizou apresentações em Cabo Verde, Estados Unidos e em Burkina Faso. No Brasil já realizou apresentações em mais de 10 estados.
*Alagoano de Maceió, Tony Admond é um fotógrafo autoditada que tateia por trajetos e conceitos bem definidos na produção de imagens que transbordam sentimentos. Ao flertar com o documental e o estético, suas produções imagéticas compõem narrativas visuais poéticas – concretas e abstratas – que vão muito mais além do que é visível na fotografia. Retratista convicto em tempos de ‘selfs’, Admond expressa através de seus retratos imagens que os autorretratos contemporâneos são incapazes de captar, já que as essências humanas vão muitos mais além do que as máscaras que usamos no cotidiano. Autor da mostra fotográfica ATEMPORAL e do ensaio visual QUEBRA XANGÔ, Tony Admond possui ao longo da carreira como fotógrafo produções imagéticas reconhecidas e premiadas por instituições regionais e nacionais. (Waldson Costa)