Revista Alagoana
CULTURA VIVA, VIVA CULTURA!
Num ato de resistência ao tempo e entre as gerações; da criança à mestra de 60 anos: a cultura popular.
Texto de Lícia Souto
Agosto vem colorido. Vem ao som de atabaques, agogôs, pandeiros e tambores. Marcado a passos fortes e figurinos confeccionados à mão. Agosto é popular, no sentido mais literal da palavra, é o mês das pessoas e da cultura, ou melhor, das pessoas que fazem a Cultura Popular.
Em todo o Brasil celebra-se durante o mês de agosto as diversas tradições da Cultura Popular, como Maracatu, Reisado, Bumba Meu Boi, Fandangos, Guerreiro, entre outros. Mas essas tradições vão muito além de um mês comemorativo. O termo ‘cultura’ é conceituado academicamente como um conjunto de produções elaboradas pelos humanos. Portanto, a Cultura Popular é também um grande conjunto de saberes, ideias, obras, elementos e manifestações resultantes dessa interação entre indivíduos.
Do folclore, que é um apanhado de lendas e mitos transmitido entre gerações ao artesanato, cabem centenas de expressões culturais que se tornam herança social do povo. Elas são passadas de região para região e vão se modificando, sendo adaptadas por essas pessoas, absorvendo determinada tradição e agregando a ela a regionalidade peculiar de cada lugar.
As representações de cultura popular que conhecemos hoje constituem uma identidade cultural e, consequentemente, uma memória coletiva e o sentimento de pertencimento, porque naturalmente gostamos e nos orgulhamos de fazer parte de grupos sociais, de ser parte de algo. Mas para pertencer é necessário conhecer. É do engenho que nasce a constituição social de Alagoas. A economia açucareira teve forte influência na formação territorial de todo o Brasil, especialmente na atual região Nordeste.
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Diversas manifestações culturais que conhecemos hoje nasceram nas senzalas. Surgidas de uma mistura das expressões trazidas por escravos africanos, da cultura portuguesa colonizadora e do catolicismo predominantemente seguido pelos senhores de engenho, representada pelas inúmeras capelas dispostas nessas propriedades. Muitas dessas capelas, inclusive, ainda podem ser encontradas no interior de Alagoas e Pernambuco.
Desses retalhos de crenças, constituiu-se um sincretismo que resultou na formação religiosa da sociedade da época. Mesmo proibidas e sujeitas a um processo de aculturação, que é a modificação ou descaracterização da cultura de um indivíduo, as manifestações do candomblé conseguiram resistir e se perpetuar pelo tempo, bem como as danças, que eram uma forma de libertação para aquelas pessoas escravizadas. Decorrente do processo de aculturação, alguns autos foram perdendo seu caráter de dança mágico-religiosa, de luta entre tribos, e dessa fragmentação surgiram algumas das expressões mais conhecidas até hoje.
Trezentos anos depois, em frente a uma loja Renner, no Maceió Shopping, onde foi montado um pequeno espaço para uma exposição fotográfica em homenagem à Cultura Popular, Maria Benedita dos Santos, de 64 anos, se apresentava com seus filhos, netos e outros integrantes do grupo Mané do Rosário.
As pessoas se amontoavam nas portas das lojas para dar espaço à apresentação do grupo lendário. Diferente das outras expressões mais conhecidas, a exemplo do Coco de Roda, o Mané do Rosário tem sua própria lógica. Não é coreografado, e os integrantes seguem à vontade para correr e rodopiar livremente, ao som de pífano, em homenagem ao seu padroeiro São José do Poxim. Os homens e mulheres dançam, com longos saiões, chapéus de palha e panos coloridos enrolados na cabeça, como uma espécie de véu, para que não sejam reconhecidos. O mistério do rosto não revelado e a liberdade dos passos cativa a atenção do público. Para muitos ali, a expressão jamais havia sido vista, mas esse folguedo surgiu no ano de 1762, no povoado do Poxim, em Coruripe, à 65km de Maceió.
Não à toa, um dos grupos mais antigos de Alagoas carrega uma história mística: no ano de seu surgimento estava sendo construída a igreja de São José, e na festa em homenagem ao santo apareceram dois homens mascarados que brincaram e dançaram na porta da igreja. A identidade deles, no entanto, permaneceu desconhecida, e todos os anos seguintes, na ocasião da festa, a população ficava a espera para ver os mascarados dançarem, mas ninguém nunca descobriu quem eram. A população então começou a se reunir e copiar os trajes, modos e danças dos homens, e assim o folguedo se perpetuou até a geração de dona Benedita, que hoje é, orgulhosamente, Mestra Traíra do Mané do Rosário e Patrimônio Vivo de Alagoas.

Após a apresentação do grupo, formou-se um aglomerado de gente ao redor da Mestra para cumprimenta-la e tirar fotos, mesmo ofegante e suada por causa da dança, Maria Benedita atendeu, simpática, a todas as pessoas e posou
com um largo sorriso para as selfies desconhecidas.
Perguntei se poderíamos conversar, mas ela disse que já estava indo embora, mesmo assim aceitou que eu a acompanhasse enquanto descia no elevador.
Após a apresentação do grupo, formou-se um aglomerado de gente ao redor da Mestra para cumprimenta-la e tirar fotos, mesmo ofegante e suada por causa da dança, Maria Benedita atendeu, simpática, a todas as pessoas e posou com um largo sorriso para as selfies desconhecidas. Perguntei se poderíamos conversar, mas ela disse que já estava indo embora, mesmo assim aceitou que eu a acompanhasse enquanto descia no elevador.
Então entramos no elevador, eu, dona Benedita, um de seus filhos e mais algumas pessoas do grupo.
Liguei o gravador para registrar suas repostas e logo o filho dela abriu um sorriso e pediu aos amigos que fizessem silencio porque a mãe dele estava sendo entrevistada.
A Mestra relembrou a história que originou o folguedo, “eles cobriam o rosto para poder chegar até a porta da igreja, que na época dos escravos, os negros não podiam ir até lá, então assim eles começavam a brincar, as nove noites da festa. [...] do tempo em que eu nasci, a minha avó, dona Josefa do Carmo, era quem brincava. Ela morreu (em 1972) e eu fiquei tomando conta, brinquei desde criança.”.
O elevador abriu e nós saímos, outros filhos e netos já estavam à espera de dona Benedita. Quando perguntei se os netos que estavam ali também dançavam, ela assentiu. “Para mim, é maior emoção da minha vida, era da minha avó e agora eu espero que fique para os eles.”. Além da apresentação do Mané do Rosário, as pessoas que circulavam pelo shopping também puderam assistir a uma apresentação do tradicional Coco de Roda. O grupo Cultivando Raízes chamava atenção antes mesmo da apresentação pelos integrantes muito jovens, pelos figurinos coloridos e as alpercatas de couro.
As meninas trajavam vestidos florais e cumpridos, e seus pares, os meninos, blusa, calça, chapéu estilo panamá e nos pés meias brancas e grossas para evitar que a sandália machuque durante a dança. Alguns ensaiavam passos, enquanto outros tocavam pandeiro.
No meio deles, uma cena capturava o olhar de quem estivesse atento: duas meninas do grupo estavam encostadas na parede do shopping, sobre a qual tinha uma propaganda de loja de roupas que trazia duas modelos brancas, com roupas brilhosas e extravagantes.
O contraste entre os figurinos do folguedo e a vitrine desenhou-se metaforicamente para quem observou a cena, como uma mensagem que dizia que aqueles folguedos estavam ali, no meio de um dos maiores shoppings da capital, falando que a cultura popular está, sim, viva, presente e atemporal.
Cristina Ramalho e Pedro Lima, os dançarinos mais velhos do grupo, que guiavam os outros, contaram que essa foi a terceira apresentação deles. Cristina é na verdade professora de dança do ventre e zumba, e Pedro dá aulas de balé. Ambos trabalham em Coruripe. “Estamos tentando resgatar a cultura com esses jovens, tanto é que esta é a nossa terceira apresentação; tem jovens nesse grupo que nem conheciam o Coco de Roda. Daí a nossa secretária de Cultura (de Coruripe), Tereza Beltrão, em parceria com o Estado, resolveu formar esse grupo para ver se daria certo, e realmente, até hoje, está dando”, conta Cristina.
“A maioria desses jovens foram resgatados de bairros da periferia de Coruripe, eles já participavam de outros projetos desenvolvidos pela Secretaria.”, completa Pedro.
Cristina disse ainda que a maior dificuldade é trazer e manter esses jovens inseridos na cultura, mas ela se mantém esperançosa e orgulha-se de participar do projeto; eles pretendem formar outros grupos de outros tipos de danças e culturas.
Dalva Edite tem apenas 16 anos, é uma das jovens integrantes do grupo de Coco de Roda e participou da apresentação. Sua paixão pela dança começou quando o professor a chamou para participar de uma banda de fanfarra, desde então já foi Maria Bonita na quadrilha, dançou ballet, xaxado, coco de roda e atualmente é a madrinha da fanfarra em Coruripe.
Para a garota, dançar significa absolutamente tudo. Ela define a dança como parte de si, porque dançando ela pode esquecer suas dores e problemas. Dalva conta que após a morte da avó ela pretendia se suicidar, ela então decidiu que iria dançar uma última vez e depois se mataria. Mas após se apresentar em Maceió, ela se sentiu feliz. Através da dança ela desistiu de tirar a própria vida. “Você pode até achar besteira, mas para mim não é. As danças culturais, na minha opinião, são muito importantes para mim e para quem dança elas. A dança me ajuda a ser forte, graças a Deus a vontade de me matar se foi”, desabafa Dalva.
O que ela deseja para o futuro da cultura popular é simples: respeito. “Pelo menos isso, porque a gente dança e algumas pessoas já dizem que é macumba e tal, espero que seja respeitada a cultura de cada um”, reflete.
Leia a segunda parte desta reportagem especial.