Principais categorias:

“Espero que ainda existam olhos dispostos a encontrar poesia nos escombros”

Conversamos com a escritora alagoana Sara Albuquerque sobre sua obra e trajetória poética. Com quatro livros publicados, sendo três deles de temática infantil, o seu quarto livro de poesia “Sete Centímetros de Língua” traz assuntos importantes como padrões estéticos, aceitação do corpo, sororidade e também a violência contra a mulher.

Texto de Gabriely Castelo

– Como você começou a gostar de poesia?

Sara – Comecei a gostar de poesia, primeiro, por incentivo do meu pai, que me desafiava a decorar e recitar poemas inteiros de Augusto dos Anjos, os favoritos dele. Como recompensa, eu ganhava dinheiro para comprar gibis na saudosa banquinha do Seu Petrúcio, no bairro do Salvador Lira. Lembro também de, aos dez anos, ter escolhido na Sodiler do Iguatemi (em 2000, a única livraria em Maceió) um livro de poemas chamado “Em algum lugar no tempo”, da autora Renata Miranda. Era uma edição simples, em brochura, a tipologia do título similar a daqueles tradicionais convites de casamento, o fundo de cor roxa e, centralizada na capa, a fotografia em preto-e-branco de um bosque de araucárias. Lembro-me de ter achado tudo aquilo muito curioso.

E não me arrependi da compra: os versos daquela escritora desconhecida emocionaram muito a menina que fui. Eu os reli muitas vezes, a ponto de decorar muitos dos poemas. Para um deles, chamado “decepção”, compus até melodia e, vez ou outra, ainda hoje cantarolo. Mais velha, procurei a autora nas redes sociais, mas infelizmente nunca a encontrei. E o livro físico, que triste, acabou se perdendo com as mudanças de endereço. Tomara que alguém o tenha achado.

No ensino médio, apaixonei-me por Adélia Prado (“Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou.”), mas caí de amores mesmo por Cecília Meireles. Somos tantas. Até hoje, quando leio “retrato”, sou acometida de uma sensação estranhamente familiar, a mesma que tive, aos catorze anos, quando passei a vista naqueles versos pela primeira vez, “Eu não tinha esse coração / Que nem se mostra”, deixamos tanto pelo caminho. Não tenho dúvida que Cecília me influenciou de forma direta no início da minha escrita de poemas. Curiosamente, eu e ela nascemos em 07 de novembro (ela, de 1901, abrindo o século XX, e eu, 90 anos depois) e, embora isso seja uma coincidência insignificante, gosto de me iludir com a ideia de que eu e ela estamos conectadas pela poesia dos aniversários. Só mais adiante, conheci as poesias de Manoel de Barros e Hilda Hilst – ah, como eu os amo – e comecei a garimpar melhor a poesia brasileira contemporânea, em especial a produzida por mulheres.

– Sendo escritora também de literatura infantil e também poesia “adulta”, qual tipo de literatura você diria que te dá mais gosto em escrever?

Sara – É que não tem isso de “mais gosto” por literatura infantil ou por poesia, sabe? São desafios diferentes de escrita. Em ambos, a lapidação é lenta, exige mais maturação e menos ansiedade.

Meu trabalho é brincar com as possibilidades da palavra, é sempre uma delícia.

–  Quais são as suas maiores inspirações literárias? Existe alguma figura alagoana que te inspire?

Sara – Quanto às figuras alagoanas que me inspiram poesia: minha mãe, Remilda, e minha avó, Lindaura, sempre. Especificamente sobre a influência de outros autores, na adolescência, me inquietaram muito as obras de Clarice Lispector (a profundidade nas miudezas) e de Graciliano Ramos (sua objetividade e trabalho impecável com a linguagem, além da abordagem sóbria das questões sociais do nordeste). Mais velha, me encantei com as obras da Lygia Fagundes Telles e passei a ler bem mais autoras – prestando atenção ao fato de que os livros que chegavam até mim geralmente eram escritos por homens. Garimpei bastante. Percebo que, hoje, tenho uma influência mais direta das contemporâneas, como Angélica Freitas, Marília Garcia, Noemi Jaffe, Verônica Stigger, Ana Martins Marques, Jarid Arraes, Harini Kanesiro e Julia Raiz. São tantas. Percebo que, ao terminar de ler uma narrativa (desde romances inteiros a poesias e contos avulsos na internet), alguma coisa em mim se renova, algum impulso inventivo se modifica. Eu mudo. As referências também.

– Qual a sua visão sobre a cultura, principalmente no campo da literatura aqui em Alagoas?

Sara – Temos muita coisa sendo produzida pelos mais diversos artistas, em diferentes partes do estado. Para citar um evento recente que contribuiu para a reunião e visibilidade de muitos deles, tivemos, durante dez dias de novembro de 2019, a IX Bienal Internacional do Livro de Alagoas, liderada pela professora Elvira Barreto junto da equipe Edufal (da qual eu fazia parte, à época). A programação cultural foi bastante variada e as boas opções eram tantas que, por vezes, os horários se chocavam e ficava difícil escolher para qual ir. Alagoas é rica demais em produção cultural. Mas os alagoanos consomem o que aqui é produzido?

Nesse aspecto, tenho mais perguntas que respostas: Por que percebemos esse desinteresse e até menosprezo (inconsciente?), inclusive, entre os próprios artistas daqui, quanto à produção local? Quanto de literatura, música, teatro, cinema, arte alagoana, o alagoano tem consumido?

– Tem alguma poesia sua a que possua mais afeição?

Sara – Não sei se posso dizer “mais afeição” porque todas, em si mesmas, têm a sua potência e memória inaugural junto a mim; mas existem alguns versos que continuam a me ressoar por dias a fio, mesmo eu já os tendo escrito faz tempo. Eles ressurgem do nada, estranhíssimos. Este primeiro foi publicado no projeto Haicai com Wifi Convida dos artistas Sérgio Prado Moura e Natália Silveira:

o cacto se

suicida engo

lindo o espinho

E o segundo foi publicado em Giz Morrendo (2018), pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos:

a culpa

pa

pa

acompanhando

o pulso

so

so

Sim, esses me inquietam bastante.

Por outro lado, existem também outros poemas que, reafirmo, não é que por eles guarde “mais afeição”, mas, sem dúvida, há uma tríade que demarcou momentos importantes, não apenas na minha trajetória de escrita, mas no processo de me reconhecer mulher e feminista:

  • o poema rede social, disponível em “sete centímetros de língua” (Patuá) – é uma poema-performance, cujo primeiro verso é “não sei se você sabe, mas eu peido”. Foi com ele que participei da minha primeira batalha de Slam Peleia, no Largo Zumbi dos Palmares, em Porto Alegre, e que também consegui o primeiro lugar, ao lado do escritor Tiago Germano, no I Slam Científico da PUCRS, em 2017.
  • o poema gérmen de criação – surgiu de um triste episódio que aconteceu no Teatro Bourbon, em Porto Alegre: por embaraçamento e insegurança, perdi a oportunidade de ler uma poesia para um dos meus artistas favoritos, o Fernando Anitelli, que comanda a trupe “O teatro mágico”. Essa vergonha em demasia originou o poema, que acabou sendo escolhido, em 2018, para representar o Mulherio das Letras em mais de mil rótulos da Cerveja Poética, projeto da Cerverbaria em São Paulo, ao lado de outras poetas como Angélica Freitas, Alice Ruiz e Natasha Félix; e recebeu menção honrosa no Concurso Gustavo Paiva, da Academia Alagoana de Letras, em 2019.
  • o poema abóbora – nasceu do processo de readaptação à casa de mainha, para onde eu retornei depois de ter passado dois anos fora estudando. Escrevi num pôr-do-sol do quarto de hóspedes, que passou a ser meu. Em 2019, ele foi contemplado em 1º lugar no V Concurso de Poesia Jorge de Lima, da Secult-AL.

– Como foi o nascimento de seu primeiro livro de poesia?

Sara – Os poemas de “sete centímetros de língua” foram escritos durante 2017 e os gatilhos foram vários: escrevia porque, pela primeira vez, em anos de terapia, tive a coragem de me apropriar dos abusos que me aconteceram na infância/adolescência e o processo de assumir minha própria história foi bastante doloroso; escrevia porque era uma forma de expor as inquietações diante dos meus estudos feministas; escrevia porque comecei a participar de Slams onde as batalhas geralmente traziam poemas de resistência. Da mescla disso tudo, meu objetivo foi criar poemas-de-voz-e-movimento (inclusive, em contraponto ao silenciamento que nos foi imposto por tantos anos), a partir da perspectiva de Paul Zumthor, que difunde a “leitura literária enquanto performance”. Então, a Editora Patuá abriu uma chamada de originais, em novembro daquele ano, e resolvi participar. O lançamento aconteceu em fevereiro de 2018, mas foi um choque para mim em dois aspectos: primeiro, pareceu-me incompleto o livro apenas com a palavra impressa (talvez, porque as poesias-zigotos se originaram a partir da performance corpo-voco-visual); segundo, eu não estava pronta psicologicamente para o boom de feedbacks. Várias leitoras compartilharam comigo suas experiências em relacionamentos abusivos e isso foi de uma intimidade enorme.

Estreitei laços. Criei novos. Senti-me acolhida e procurei acolher. Mas foi assustador porque eu estava com depressão profunda, exatamente por tratar questões de violências do passado. Quando a vereadora Marielle Franco foi assassinada, em março, entrei em pânico. Ali, percebi que, embora eu tenha me sentido pronta para escrever “sete centímetros de língua”, ainda não estava forte o suficiente para lidar com os “holofotes” decorrentes da temática. Recusei entrevistas e convites a eventos, e me retraí para me cuidar. Aos poucos, estou retomando o contato com os poemas dele. Agora, melhor resolvida com as minhas dores.

– Quais os planos para o futuro?

Sara – Sinceramente? Espero que, se eu sobreviver a essa pandemia e ditadura velada que estamos vivendo, ainda existam olhos dispostos a encontrar poesia nos escombros.

– Quais as suas indicações artísticas para os seus leitores e leitores da revista?

Sara – Por hoje, indicarei alguns livros de poesia:

· Valsa triste (Fátima Costa) – Iogram, 2018

· Veludo violento (Natasha Tinet) – Iogram, 2018

· Verde vidro (Amanda Prado) – Ofélia, 2019

· Fotogramas (o silêncio possível) (Natália Agra) – Megamíni, 2019

· Os meninos iam pretos porque iam (Lucas Litrento) – Iogram, 2019.

· Entre ratos & outras máquinas orgânicas (Richard Plácido) – Iogram, 2016

· Amarela outra rosa (Luiz Felipe) – Ofélia, 2019

· Agrafia (Isaac Bugarim) – Iogram, 2014

Lá no meu Instagram, caso haja interesse, pretendo manter o hábito de comentar sobre leituras e outras fruições artísticas.

Últimas notícias

Inscreva-se para sempre receber as nossas novidades

Comente o que achou: