Revista Alagoana
“Sonhar é bom, realizar é melhor ainda, eu garanto.”
Texto de Lícia Souto
“Eu tinha muito medo de cair, até que eu cai uma vez numa apresentação com o teatro lotado, e aquilo ali foi uma tomada de consciência muito grande. Eu tinha 13 anos quando isso aconteceu e eu costumo dizer que foi o melhor dia da minha vida, porque foi o dia que eu entendi que eu sou bailarina de verdade, afinal, todo bailarino já caiu em cena, e por que eu não posso cair também?” responde Bibi.
Bibi. O apelido é pequeno, mas refere-se a uma mulher gigante: Gabriela Amorim. Gabriela tem 25 anos, nasceu com uma deficiência que implica numa má formação da coluna, mas muito além disso, é a filha de Antonieta e Francisco, é uma mulher extrovertida, que gosta de viver intensamente e que faz tudo que “pessoas com deficiência não podem fazer”.
Não tem medo de sonhar alto e nem de mover o mundo ao seu redor para realizar esses sonhos. Essa obstinação fez uma bailarina, a primeira e única bailarina cadeirante de Alagoas. Quando se recorda da infância, Gabriela resgata memórias doces de uma criança como qualquer outra, com joelhos ralados, pés machucados, brincadeiras, amigas da escola, jogos internos. Ela conta que os pais sempre fizeram questão que a menina participasse do que sentisse interesse e vontade.
Aos nove anos, enquanto assistia um espetáculo do balé Jeane Rocha Academia de Dança, surpreendeu a mãe com um pedido: “Em pleno teatro, no meio da apresentação, falei: ”mãe, eu quero fazer ballet”. Minha mãe se espantou por eu ser uma criança com deficiência que queria fazer ballet (uma técnica que exige 90% das pernas). Mas ela sempre lutou muito pela minha felicidade e foi atrás do meu sonho. Um dia jantando num restaurante, encontrou a irmã da Jeane, Isabelle Rocha, e contou do meu sonho. Isabelle conversou com irmã sobre eu ser uma menina com deficiência e elas falaram abertamente com minha mãe que nunca tiveram experiências com cadeirantes antes, e minha mãe falou a seguinte frase: “aprendam com a minha filha”. E há 15 anos nós aprendemos juntas.”

Foto: Adriano Arantos
Assim, Gabriela passou da plateia para os palcos. Nessa longa trajetória, a bailarina reconhece que aprendeu muito mais do que esperava, aprendeu a olhar o próximo, ter responsabilidade e disciplina. Tornou-se mais intima de si, aprendeu a lidar mais com o próprio corpo, abraçou o improviso e aprendeu também a cair, que era o maior medo e dificuldade no começo. Aos 13 anos caiu durante uma apresentação com o teatro lotado, e mesmo sem querer, enfrentou um dos maiores medos. Hoje, ela considera aquele momento um dos mais significativos em toda sua vida, porque ali se reconheceu como bailarina de verdade; bailarinas caem em cena, por que ela não poderia também?
“A dança é onde eu me refugio quando preciso. O palco se tornou o meu lugar favorito no mundo. Eu me tornei adolescente e adulta em cima do palco. Faltei aulas, provas da escola pra poder ir dançar e eu faria tudo novamente se fosse preciso. A dança é a extensão da educação que eu tive em casa. Aprendi a respeitar o outro e a exigir respeito, a ter responsabilidade, e a viver em grupo.”, comenta.
Quando perguntada sobre a acessibilidade nos espaços culturais e na capital de uma maneira geral, Gabriela explica que acha um pouco triste responder isso porque considera zero. Em um dos episódios que já passou em virtude desse problema quando foi se apresentar em um teatro, por não ter camarins acessíveis, se trocava na coxia, mas a medida que foi se tornando adulta, isso acabou sendo problemático pra ela. “No outro teatro o camarim é perfeito, só que na plateia a acessibilidade é zero. Jeane sempre faz uma reunião antes de começar a sessão do espetáculo e eu sempre fico em cima do palco, enquanto todos os meus amigos estão na plateia. E quando sou espectadora, tenho que ficar na porta do teatro, porque é lá o lugar que eles dispõe para o cadeirante. Em outros locais da cidade também não acho que tenha acessibilidade. As pessoas costumam achar que acessibilidade se resume a ter uma rampa no local e na verdade não.”, explica a bailarina.
Ela, como tantos outros artistas alagoanos, viveu madrugadas de ansiedade com a chegada da pandemia. Foi nesse momento de paralização cultural que ela percebeu que não importava o que fizesse, ela só queria e precisava estar no palco, é lá que o coração de Gabriela bate forte.
Agora, aos poucos retomando o ritmo, ela iniciou aulas de canto e pretende começar as de teatro também. Para esse futuro breve, pretende se lançar, conhecer outras formas de arte, voltar a viajar, ir dançar nos palcos de São Paulo e Rio de Janeiro.
Para Gabriela, a vida por si só já é inspiradora o bastante, mas ela leva consigo algumas pessoas que tornam ainda mais. “Meus pais. Se eu sou essa pessoa hoje, é por causa deles. Jeane e Isabelle Rocha me inspiram. Foram elas que me ensinaram tudo que eu sei sobre dança, e sinceramente acho elas umas gênias. Além delas, minha maior inspiração se chama Helga Nemetik. Ela me inspira como ninguém e me apoia a sempre continuar no caminho da arte. Procuro inspiração também em cada música que ouço e em cada detalhe espalhado pela vida.”.
Como uma mulher que já enfrentou alguns de seus piores medos e arriscou em chances improváveis, Bibi deixa um conselho para todas as outras mulheres que tem receio de dar um passo em direção a um sonho, de mudar de carreira, de aprender algo novo, de começar quando parece impossível: “Se joguem. O medo prende a gente. É se jogar num lugar que você não conhece, e se permitir conhecer. A vida é incrível e a gente precisa desfrutar dela. Nós vamos receber muitos nãos, principalmente se você for uma mulher com deficiência, pois infelizmente vivemos numa sociedade extremamente capacitista, que vê a pessoa com deficiência como alguém vulnerável a tudo, e não somos! Mas você, mulher com ou sem deficiência, faça cada “não” ser um motivo e um impulso para você ir em busca do sim. No mais, não desistam dos seus sonhos. Sonhar é bom, realizar é melhor ainda, eu garanto.”, finaliza.
Gabriela é a capa da edição de março da Revista Alagoana.
