Reisado Virgem dos Pobres
90 anos de resistência e memória em Viçosa
"Oh! Viçosa do nosso Brasil
Eu longe de ti, a saudade me mata
És de prata cidade mimosa
Teu nome Viçosa é princesa das matas"
Fortes pisadas no chão, vozes de palavras improvisadas que formavam versos e entoadas ao som de instrumentos como gaita e sanfona atraíam os olhares dos vizinhos que se espremiam entre si para dar uma espiada, num dos poucos meios de entretenimento daquela gente. Ora, a década era a de 60 e não existiam celulares ou internet e raros os que possuíam TV´s. Os poucos casebres da pequena localidade rural competiam espaço com as plantações de cana e bananeiras a se perderem de vista.
Longe dali a 1.789 quilômetros, o Brasil acabara de ganhar uma nova capital federal. O clima era de euforia e esperança entre a população da época contrastando com a atmosfera desértica e seca da localidade geográfica que Brasília situara-se.
Enquanto uns tiveram que se contentar em apenas saberem da notícia pelo o rádio ou televisores, outros se preparavam para participar das comemorações. Osório Tavares dos Santos que já era conhecido e respeitado na cidade de Viçosa-AL e arredores viria a ser um dos convidados a levar um pouco da rica cultura de Alagoas a região Centro-Oeste do País.
"Este ano eu vou ensaiar
Eu quero cantar
As pecinhas da vila.
Faz a fila menina, cuidado
Que vai ser gravado
Pra ir pra Brasília."
Mesmo sendo um dos principais nomes de referência ao reisado brasileiro, especialmente o alagoano, e o criador dos trechos da canção acima, Mestre Osório não foi o genitor da herança cultural da família Tavares. Seu antecessor foi seu pai, o sr. Terto Tavares dos Santos, o qual por razões da longínqua época em que viveu, nada se pôde documentar sobre o fato além da vaga memória de seu neto em entrevista por áudio.
“Eu não tô aguentando, mas eu quero que você fique com esse reisado. Tem de ser uma tradição para não acabar”, disse Terto para o filho Osório.
Na contramão, Mestre Osório filho do sr. Terto – ambos in memoriam – com mais sorte deixou seu legado em registros e memórias nas gerações sucessoras. Um desses momentos foi o alvoroço gerado no povoado Bananal, reduto do reisado de mesmo nome, com a notícia da ida a Brasília para que todos do grupo pudessem se apresentar por lá.

Grupo de reisado do Bananal em apresentação nacional na década de 60. Foto: Arquivo pessoal do Mestre Expedito
Com Brasília pronta e entregue aos brasileiros, a localidade estava preparada para assumir e receber os poderes de nova capital do País transferidos da cidade do Rio de Janeiro. Era preciso levar muito além do que órgãos institucionais do Governo. O Distrito Federal de Juscelino Kubitschek, com avenidas largas e planejadas necessitava também ser invadida pelo espírito brasileiro: festeiro e contagiante.
Mas em Viçosa, uma cidade situada em área de transição da zona da mata para o agreste alagoano já vive sob esse clima efervescente desde cedo. Como em poucos municípios do País, nela encontra-se quem faz a folia sob o título de mestres e mestras; àqueles que respiram essa frondosa singularidade – toda população das diversas comunidades ou povoados – e os que detêm ou detiveram o viço de estudarem as manifestações folclóricas do município formando a Escola de Viçosa.

Capa do Suplemento do Jornal da Produção estampando Mestre Osório e intelectuais de Viçosa em 1975. Foto: Arquivo Museu do Vô
Com a entrada do atual século, Mestre Osório já não esbanjava mais de tanta saúde e energia para comandar e coordenar um grupo tão dinâmico quanto o seu. Era a hora de se aposentar das atividades e ceder seu lugar de destaque a um novo herdeiro, assim como acontecera com ele décadas atrás. O escolhido foi um de seus filhos do meio: Expedito Tavares dos Santos.
Mesmo já acompanhando o pai em diversas apresentações do reisado, sr. Expedito custou em acreditar no poder de tomar para si a responsabilidade de assumir o lugar de seu pai como mestre. Mestre Osório já não podia estar mais com a mesma habilidade dos rápidos improvisos que lhe rendeu fama, mas tinha total clareza da sua escolha.


Reportagem retratando os onze contemplados como Patrimônio Vivo de Alagoas em 2011.
Foto: Arquivo Museu do Vô
Mestre Expedito segurando seu certificado de RPV/AL.
Gif: Bertrand Morais
Realmente, Expedito Tavares dos Santos pudera aprender o necessário para a garantia da continuidade do legado de seu pai. Mas, no seu caso, tudo isso não foi o bastante. Ele precisava de alguém ao seu lado que lhe desse além da motivação, um suporte para constituir e coordenar um novo grupo de reisado com tradição e particularidades.
Esse apoio veio de quem menos o Mestre Expedito esperava: Maria Cícera Leite da Paz. Ela foi nascida e criada no mesmo povoado que deu nome ao reisado de Mestre Osório, e já era uma observadora da folia, além de vizinha da família Tavares.
No perímetro urbano da cidade de Viçosa, seu Osório Tavares mesmo sem saber, poderia aproveitar a aposentadoria do folguedo com tranquilidade. Seu legado estava sendo preservado na zona rural que deixara para trás em busca de descanso. Cícera Leite já tivera convidado os novos brincantes do folguedo e estava na atual missão de confeccionar os figurinos e acessórios de todos eles.

Contra Mestra Cícera vestida de Joana Baia, umas das peças do Reisado Virgem dos Pobres.
Gif: Bertrand Morais

Mestra Cícera reunida com figurantes mirins para ensaio do reisado do povoado.
Foto: Arquivo pessoal Cícera Leite
Com tudo pronto era a hora de reunir todos os participantes num local já bem frequentado pela grande maioria deles: a praça do povoado. Ali crianças e adolescentes da localidade se reúnem para jogar bola, brincar ou conversar entre amigos. Em frente a ela, a igreja da comunidade, mas não o único espaço de fé e orações da região. Por todo o povoado, inúmeros altares com santos católicos se revelam ao longo de uma caminhada.
Uma das primeiras sugestões dada por Cícera Leite ao reisado que acabara de vingar foi a mudança do nome de Reisado do Bananal para Reisado Virgem dos Pobres. O porquê estava em a santa ser a padroeira daquela pequena localidade rural. Assim, trazendo uma relação identitária ainda mais forte com a comunidade.

Cícera Leite em frente à igreja do povoado Bananal que deu nome a atual geração do reisado da comunidade.
Gif: Bertrand Morais
A nova era do reisado caiu no gosto do povo e a fama já estava espalhada por toda região de que o Mestre Expedito juntamente com a Contra Mestra Cícera estavam comandando um reisado de primeira.
Enquanto a certeza da continuidade do reisado de Viçosa é garantida pelos os saberes herdados pelo Mestre Expedito juntamente com a habilidade de gerenciamento da Contra Mestra Cícera, o cuidado em preservar toda a história documentada do folguedo está nas mãos de outro viçosense: Manoel dos Passos Vilela.
A popularmente conhecida praça do cinema – devido ao Cine Godoi que existiu em frente a ela – é ponto de referência para um dos imóveis que abriga o acervo mais rico para a história e cultura da cidade de Viçosa atualmente: o museu do vô.

Bonecos com vestes artesanais representando os folguedos de Viçosa, expostos no Museu do Vô. Foto: Bertrand Morais
Títulos, indumentárias, acessórios, recortes de notícias, confecções artesanais, registros fotográficos, utensílios da época e até copilados de cada mestre e mestra falecidos ou ainda vivos da cidade de Viçosa podem ser encontrados no espaço preservado por seu Manoel dos Passos. Uma passada por lá é uma viagem no tempo.
Senhor Manoel dos Passos, ou apenas Vô para os conhecidos, que foi amigo próximo de Mestre Osório, tem uma extensa trajetória política em Viçosa com ações voltadas a cultura e projetos sociais.

Sr. Manoel dos Passos em frente ao museu fundado e dirigido por ele no Centro da cidade de Viçosa.
Gif: Bertrand Morais

Uma manifestação cultural com mais de 90 anos de sobrevivência ameaçada pelos efeitos da pandemia do coronavírus. Essa é a realidade do Reisado Virgem dos Pobres. Nem o isolamento geográfico de 11 quilômetros de distância do povoado de bananal até a cidade de Paulo Jacinto, área urbana mais próxima, poupou os efeitos inditosos que contrastam com a essência de aproximação e confraternização entre os moradores.
Comandado por Mestre Expedito Tavares e coordenação da Contra Mestra Cícera Leite, o folguedo atualmente é composto em predominância por idosos e crianças. E as mesmas regras de enfrentamento e prevenção ao Covid-19 que passaram a valer nos centros urbanos brasileiros desde março, também passou a reger a vida dos moradores de regiões mais isoladas, atingindo em cheio a dinâmica do grupo de reisado do povoado de Bananal. A folia de outrora deu lugar a incerteza do agora.
Josefina Novaes é professora aposentada, trabalhou por 21 anos na SECULT/AL com cultura popular e sócia da Associação dos Folguedos Populares. Para ela, tais preocupações em um possível desaparecimento dos reisados alagoanos são antigas, visto que o Dr. Théo Brandão, estudioso viçosense, já tivera mencionado essa questão em seu livro Folguedos Natalinos, na década de 40.
Ela acrescenta que em tempos de pandemia como o nosso, os ensaios e apresentações foram afetados, mas já vinham sendo escassos. Em contrapartida, o Poder Público lança um novo olhar para a cultura popular, a exemplo da Lei Aldir Blanc, presenteando-os com uma série de editais e subsídios para aquisição e manutenção de indumentárias e adereços.
Em 2011, um grande passo foi dado para a valorização do Reisado Virgem dos Pobres: Mestre Expedito recebe o título de Patrimônio Vivo de Alagoas. Atualmente, quase dez anos depois com 62 anos, concede-nos uma entrevista na casa dele se queixando de dores na coluna. Ao ser perguntado sobre quem estaria apto a substituí-lo a qualquer momento, ele hesita, pensa e responde que não vê ninguém pronto.
Josefina Novaes afirma que devemos ter uma preocupação com a continuidade dos grupos, estimulando mestres e mestras a prepararem um substituto no caso de sua ausência. Apesar disso ela se mostra otimista.
“Enquanto houver uma criança brincando no grupo, teremos a certeza de sua continuidade”, reitera a Profa. aposentada Josefina Novaes

Sra. Josefina Novaes, professora aposentada e membro da Associação dos Folguedos Populares de Alagoas.
Foto: Arquivo pessoal

Apresentação tímida devido a pandemia do coronavírus na casa de
Mestre Expedito ao lado da Contra Mestra Cícera
Vídeo: Bertrand Morais

Tela dos folguedos alagoanos exposta no museu do Vô. Foto: Bertrand Morais

O comando do
Reisado a partir
dos anos 2000
Chapéu usado por Mestre Osório exposto no museu do Vô. Foto: Bertrand Morais

Ameaças
contemporâneas
ao folguedo
Recorte do Suplemento do Jornal da Produção em 1975. Foto: Bertrand Morais
Reportagem: Bertrand Morais
Vídeos: Bertrand Morais
Fotos: Bertrand Morais e arquivos pessoais
Orientação: Prof. Me. Josbeth Correia Macário